quarta-feira, 12 de maio de 2010

Devaneios Noturnos III

Era uma noite de quinta-feira. Uma amiga veio de outro estado passar uns dias aqui. Juntamos um pessoal e nos reunimos no restaurante do Português. O Português é o pai de outra amiga, muito querido por todos nós. Praticamente um ícone. Talvez ele nem saiba disso. O restaurante não é dele, mas ele É o Português, então o restaurante É dele.

Enfim... Muitas risadas efusivas, pizzas e cerveja. Alguns dizem que não combina, eu digo que alguns momentos, quando mais especiais, não possuem defeitos.

Cansado, pego o metrô de volta pra casa. Fico irritado com tanto barulho atrapalhando minha audição do mp3. Desligo. Fecho os olhos. O metrô balança, para, anda, balança, grita, para. Fico entorpecido pela dissonância e durmo.

Alguém me acorda, é a estação final.

Corro na tentativa de me manter acordado e pegar o que julgava ser o último trólebus*.

Ligo o mp3. Tento observar a cidade para me distrair e não dormir novamente. Apesar da posição incômoda, cedi.

Dormi e acordei várias vezes. Quando por fim me dei conta de que estava próximo do meu ponto, dei um pulo do banco. Quase perdi o equilíbrio. Estava difícil ficar em pé e mais ainda de manter os olhos abertos.

Desci do veículo e olhei para os lados. Fui surpreendido por uma intensa neblina que não possibilitava ver o fim da rua à esquerda ou a curva à direita. As luzes pareciam mais fortes e o ar pesado. Apesar da névoa, não estava frio. Vou atravessar a rua e tomo um susto com um carro em alta velocidade. Chego do outro lado, no ponto de ônibus e pergunto a umas pessoas se “já passou a linha tal”. Ainda tem um último, penso. Sento e encosto o corpo podre de cansaço.

Olho ao meu redor e percebo um clima estranho nessa noite. Como se estivesse numa cidade dentro de alguma caverna. Não venta. A neblina continua ali, estática. É quase impossível ver os prédios e o céu. Um grande borrão.

Finalizam-se as guitarras arrastadas e pesadas nos meus ouvidos. Procuro por alguma coisa que combine com isso. Encontro e entro em transe. Essa intro sempre faz isso comigo. Um abrir de portas.

O farol abre e fico cego com as luzes dos carros. Vejo um ônibus, mas não consigo ler. Tento enxergar em vão. Uma silhueta que parecia ser feminina, tampa a minha visão. A figura invade as luzes do poste e vejo que é um travesti, com cara triste. Pareceu estar numa noite ruim. Ele senta e acende um cigarro. Começa a tossir.

O ônibus passa vazio.

Um senhor passa e fica olhando para o travesti com um riso bobo na cara. Riso de piadinha. Reafirmo a certeza de que essa é uma cidade interiorana. Aqui o mundo parou em 1980.

Viro minha atenção para as pessoas que perguntei sobre o ônibus. Um cara da minha idade e duas mulheres, não velhas, mas com mais idade. Estão falando sobre a bíblia, Xerxes, Constantine.
Me intrigaram, aqueles evangélicos. Questionando a criação da bíblia e toda a politicagem da religião. Uma das mulheres percebe que estou olhando. Continuo, ela não. Gravo um pequeno filme na mente.

Fecho os olhos, encosto a cabeça um pouco e penso que deveria pagar um taxi. Posso ter errado e estar esperando por um ônibus que já foi.

O que estou falando? Não tenho um puto no bolso... Mas também não posso dormir agora.

Me forço a ficar acordado. Abro os olhos e vejo do outro lado, onde desci do trólebus, dois homens. Um deles sentado no banco, quase dormindo, como eu. O outro, fazendo exercícios de aquecimento, em pé. Devia estar com frio. Pareceu que ia iniciar uma corrida.
Dez minutos e até agora só passou uns dois ou três carros, uma moto e um ônibus. E não era o meu.

O travesti continua tossindo.

Um Astra branco para na frente do ponto e buzina rápido. A “garota” da noite levanta em dúvida e vai conferir, afinal, não tem nada a perder. O cara do carro se assusta e a dispensa. Um japonês pula rápido e com agilidade por cima dos bancos do ponto de ônibus. Vai conversar com o cara do carro. O do Astra passa um envelope grande e branco pro japonês. Reconheço que o japonês é taxista. Deve ser alguma coisa de trabalho.

Todos reparam na cena. Eu, o travesti, os evangélicos duvidosos, um cachorro que esta sempre jogado por aqui e um pipoqueiro. Sim, havia um. Como poderia me esquecer daquele senhorzinho que parecia um Oompa-Loompa (do Burtom)?
Não é para menos. O mundo parecia se mover em slow-motion. Os sons abafados. As pessoas cansadas.

Passa outro carro e um ônibus apagado.

Aquela espera parecia não ter fim. Não mexi um dedo. Fico olhando os prédios na neblina. Algumas luzes ainda se acendem.

Meia noite e trinta e cinco. Uma luz laranja vem consumindo a pista. É meu ônibus. Subo nele. Só tem duas pessoas. Um cara encapuzado, que me pareceu drogadão e uma menina bonitinha que lia um jornal. Sentei e fiquei vendo a cidade passar em meio à fumaça. Estranho só ter reparado naquela hora o quão sombria estava a cidade. Noto meu reflexo no espelho. Estou a bocejar e com os olhos fundos.

Cama. Minha cama, penso.

Desço no meu ponto. Tomo um pouco de ar e olho para atravessar a rua. Não era nem preciso. Não tinha nada, nem ninguém, só uns caminhões enfileirados pela rua. Todos quietos.
Um silêncio ensurdecedor. Podia sentar no meio da estrada. Podia dormir no meio da estrada.
Até que não seria uma má idéia.
Chego em casa e encontro meu pai ainda acordado.

“Ooopa! Chegou!”

“Tava me esperando?”

“Não. Tava vendo filme.”

“Vou fazer um chá.”

“Ta ruim?”

“Comi muito.”

“Aham... E vai ligar o computador? Não vai dormir?”

“Tenho algo pra escrever”.

Ao Som de: Madrugada – Industrial Silence.

*: Os trólebus são ônibus elétricos que possuem uma faixa própria. Considero uma extensão do metrô, que infelizmente, não funciona como baldeação. Somos obrigados a pagar duas conduções.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Experimente

Hoje percebi que as coisas mudam de sabor com o passar do tempo. Aquele chocolate que você comeu ontem, pode não ter o mesmo sabor amanha. E não é a industrialização.


Pense nisso.


Tudo muda de sabor. Aquela música que você sempre odiou e torcia o nariz como se tivesse um limão na boca, pode muito bem ter um gosto de abacaxi com muito açúcar. Percebe que não se perde a acidez?


Ir para a praia no começo pode ter um gosto óbvio, salgado, mas com o tempo passa a ter um gosto de peixe. Pode ser salmão, atum ou bacalhau. Enxaguado com muita água de coco.

Uma vez ouvi que o Outono tem gosto de madeira, ou beterraba, não lembro. Pra mim não tem gosto de nada. Ainda. E pra você? Tem?


Levando a um outro patamar. As minhas vitórias e derrotas. Também possuem sabor. Um sabor que muda periodicamente. Um sabor, que hoje chega a ser puro e entorpecente, independente de serem opostos. Por vezes, claro, contrasta com sabores estranhos, meio agridoces, salgado ou simplesmente doces demais.


São tantas as coisas não óbvias que possuem gosto. O amor, por exemplo, dizem que é doce. Eu não sei, nunca provei, mas entendo o porquê disso.

A saudade sempre teve um gosto bom, só nunca consegui definir. Ela é inconstante e me abala fácil, dificulta o degustar.


O dormir é quase como um copo de água com açúcar. Já o levantar depende. Apesar do gosto amargo da boca, é possível piorá-lo, quando se lembra daqueles compromissos azedos logo que se abrem os olhos.

Mas bom mesmo são os programas com entrada, prato principal e sobremesa. Preparado por grandes chefes.


Um carinho, no caso, um beijo. Também não é diferente. Aquele beijo que antes parecia apimentado e selvagem, hoje, (in)felizmente, se tornou algo doce e quente, mas não a um nível selvagem. Uma pergunta, uma conversa, uma intimidade, uma desavença, segundos, mudam tudo. Muda o gosto. Muda a forma como ele se processa na cabeça. Não é a mesma coisa e nunca mais vai ser igual. Isso é bom? É ruim? Só você para ter ciência dos benefícios e malefícios dessa evolução/mutação.


Não volta, não tem jeito.


Você pode sentir muita falta do sabor daquele guarda-chuvinha de chocolate que não tem mais por ai. Da comida da sua mãe. Daquele salgado que você comeu num café em Buenos Aires. Mas a lembrança vem como uma brisa e brisa é foda. Vem devagar, suave, porém é TÃO boa que acaba te deixando com expectativas e saudade.

Chega a decepcionar quando você, por ironia do destino, encontra o chocolate num mercadinho qualquer, quando você visita a sua mãe ou quando você sai de férias em Buenos Aires. Decepciona porque já não é igual. A lembrança muda, você muda, o mundo muda. Sua vida muda... De sabor.


Uma mesma mistura de alimentos ingeridos por um tempo. Alguns são bem comuns, outros mais escondidos no fundo do armário e aqueles que você nem imaginava que estavam ali. As pequenas surpresas.

Passa-se um tempo e se tira uma foto mental do armário. Já é outro, tudo mudou. Mudam-se os rótulos, mudam-se as posições e em alguns casos, a substituições, por alimentos de baixa caloria, por exemplo. Nisso, aquele arroz novo, quando misturado com o feijão antigo, vai criar uma nova experiência que não só da vida a um novo sabor, como modifica o gosto do feijão pra sempre. Deixa o sabor antigo, apenas na memória.


E este é meu dilema. A água que bebo agora, tem gosto. Um gosto estranho, diferente. Quase não sinto vontade de beber, mas tenho muita sede de água. Seria a minha cabeça criando um sabor? Seria o meu dia difícil? Ou o copo esta, apenas, mal lavado. Não importa. O gosto esta aqui, não me agrada. E isso basta pra me fazer pensar.


E hoje, a essa hora, justamente nessa hora, eu não queria sentir esse sabor. Não queria.


Ao Som de: Anathema - A Natural Disaster